Um Conflito de Interesses: O MEC e a Lei do Mais Médicos
Recentemente, uma decisão polêmica do Ministério da Educação (MEC) tem causado um grande impacto na educação médica no Brasil. O MEC parece estar se posicionando contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e a própria Lei do Mais Médicos, o que está gerando uma grande discussão sobre a relevância e a necessidade social de novos cursos de medicina em diversas regiões do país.
O Caso do Curso de Medicina da UNIFACENS
Para entender melhor o cenário atual, vamos examinar o recente caso do Centro Universitário FACENS (UNIFACENS) em Sorocaba (SP). Em julho, o MEC indeferiu o pedido da UNIFACENS para a abertura de um novo curso de medicina. A alegação foi que não havia “relevância e necessidade social” para o curso, com base apenas nos dados do município, e não na região de saúde, como estipulado pela Lei do Mais Médicos (Lei nº 12.871/2013).
A situação é mais complexa do que parece. Sorocaba, a cidade em questão, possui um índice de 5,13 médicos por mil habitantes, o que é superior ao parâmetro de 3,73 médicos utilizado pelo MEC. No entanto, a região de saúde de Sorocaba, que engloba 20 municípios, tem um índice de apenas 2,87 médicos por mil habitantes. Portanto, de acordo com a Lei do Mais Médicos, a abertura do curso de medicina seria justificada, mas o MEC ignorou esse dado regional e focou apenas no índice municipal.
A Polêmica em Torno da Portaria nº 531/2023
O MEC tem utilizado a Portaria nº 531/2023 como base para suas decisões, uma abordagem que está em desacordo com a decisão recente do STF. A portaria, por sua vez, tem sido criticada por desconsiderar os dados das regiões de saúde, optando por avaliar apenas as informações dos municípios. Essa metodologia tem levado a indeferimentos controversos de pedidos de novas vagas em cursos de medicina.
Um estudo da Associação dos Mantenedores Independentes Educadores do Ensino Superior (AMIES), que utiliza dados do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde e do DATASUS, revela que entre 196 processos judicializados em trâmite no MEC, 43 (21,93%) estão em municípios com mais de 3,73 médicos por mil habitantes, mas localizados em regiões de saúde com índices menores. Isso indica uma tendência do MEC em indeferir esses pedidos com base na Portaria nº 531/2023.
A Visão dos Especialistas
Esmeraldo Malheiros, advogado e consultor jurídico da AMIES, especializado em Direito Educacional, aponta que a decisão de indeferir o curso da UNIFACENS com base apenas no índice municipal cria uma insegurança jurídica e representa um retrocesso social. “O que acontece ali é um caso muito comum em todo o Brasil. Há casos em que o município escolhido para a sede do curso, por sua importância social e econômica, constitui polo de desenvolvimento para a região e reúne um contingente de médicos e de serviços e equipamentos de saúde muito maior que os demais municípios que integram essa mesma região de saúde e que utilizam a referida estrutura. Por isso, negar o curso com base apenas no dado de médicos por mil habitantes de um dos municípios da região de saúde, impõe um gravame aos demais municípios carentes e que compartilham e utilizam esses serviços, o que caracteriza um retrocesso social,” detalha Malheiros.
Para Edgar Jacobs, advogado especializado em direito educacional e sócio da Jacob’s Consultoria, a situação é ainda mais complexa. “Há um conceito básico de regionalização. Isso quer dizer que o atendimento de médicos de especialidades diferentes pode ser feito em várias cidades, otimizando os recursos de saúde que são limitados. Essas duas cidades vão se atender mutuamente nesse sistema integrado e regionalizado de saúde. Há um grande problema se o MEC usa a contagem apenas por municípios porque não reflete essa situação,” reflete Jacobs.
Casos Similares e a Questão Regional
O curso da UNIFACENS não é um caso isolado. Outros cursos de medicina também foram indeferidos por razões semelhantes. O Centro de Ensino Superior de Divinópolis (MG), por exemplo, teve seu pedido negado porque o município tem um índice de 4,06 médicos por mil habitantes, embora a região de saúde tenha um índice de 3,08. Outros casos semelhantes ocorreram com a UNICEP de São Carlos (SP), Centro Universitário Facvest de Lages (SC), e Instituto UNISUL de Itajaí (SC). Todos esses municípios tinham índices de médicos superiores a 3,73, mas suas regiões de saúde apresentavam índices menores. Até o momento, o MEC já indeferiu nove pedidos de novas vagas de municípios que se enquadram nesses critérios, e outros 34 ainda correm o risco de indeferimento.
O Painel da AMIES, que utiliza dados do DATASUS, aponta que 149 municípios brasileiros possuem mais de 3,73 médicos por mil habitantes e, portanto, não poderiam receber novos cursos de medicina, enquanto apenas 18 regiões de saúde teriam restrições. Isso reflete uma restrição maior aos novos cursos de medicina em todo o país.
A Decisão do STF e a Aplicação da Lei do Mais Médicos
O julgamento da ADC 81, concluído em junho pelo STF, determinou que os cursos de medicina devem seguir a Lei do Mais Médicos e considerar a sistemática de chamamento público para novas autorizações. No entanto, a decisão ressalvou que os processos já em andamento, que haviam ultrapassado a fase inicial de análise documental, deveriam seguir os critérios estabelecidos na Lei 12.871/2013, que considera os dados da região de saúde e não apenas do município. Essa decisão contraria a abordagem adotada pela Portaria nº 531/2023 do MEC.
“A oferta de ensino superior pela iniciativa privada demanda previsibilidade e segurança jurídica quanto às ações do Poder Público. No caso concreto, a situação é ainda mais grave porque há uma clara contradição entre o que estabelece a lei e o determinado pelo STF com a prática adotada pelo MEC que, aliás, contraria a própria política pública, que sempre utiliza a região como parâmetro para as ações relativas à saúde,” ressalta Esmeraldo Malheiros.
O Impacto na Educação Médica e no SUS
A elaboração de políticas públicas que considerem as regiões de saúde, e não apenas os municípios, é fundamental para o fortalecimento regional do Sistema Único de Saúde (SUS). Em julho, o Ministério da Saúde lançou um painel com informações estratégicas sobre as Macrorregiões e Regiões de Saúde, visando melhorar o SUS e aprimorar as políticas públicas de saúde. Essa abordagem regional é confirmada pelo edital do Mais Médicos nº 1/2023 e pela própria Lei do Mais Médicos.
O Ministro Gilmar Mendes, do STF, enfatizou que os critérios de relevância e necessidade social devem seguir os dados das regiões de saúde. “A decisão do ministro se deu no sentido de garantir que os processos judicializados convergissem às condições previstas na Lei do Mais Médicos. Mas o que se viu foi uma instrução com critérios muito mais restritivos, como considerar o número de médicos por município e não por região de saúde. Além disso, a norma também se declara retroativa, ou seja, aplicável aos processos já existentes, o que quebra o princípio da segurança jurídica e contraria entendimentos jurídicos já estabelecidos. Isso traz grandes prejuízos para a abertura de novos cursos e para o exercício de mais médicos no país,” conclui Edgar Jacobs.
Conclusão: Um Cenário de Incertezas
Ambos os especialistas, Malheiros e Jacobs, destacam que o edital de chamamento nº 1 do Mais Médicos, lançado em outubro do ano passado, também elege regiões de saúde para receber novos cursos, inclusive em cidades com altos indicadores de médicos por mil habitantes. Isso contraria a própria argumentação do MEC em relação à Portaria nº 531.
O cenário atual é de incertezas e contradições, refletindo um conflito entre as diretrizes estabelecidas pelo STF e as práticas adotadas pelo MEC. A abertura de novos cursos de medicina e a alocação de mais médicos no país enfrentam um desafio significativo, que exige uma análise mais aprofundada e uma harmonização entre as políticas públicas e as decisões judiciais.
Para uma visão mais detalhada sobre os impactos dessa situação, você pode conferir o Painel da AMIES neste link.