
Uma obra premiada que ressignifica a finitude com poesia e crítica
Encarar o fim como uma possibilidade concreta e ainda assim seguir em frente. Essa inquietante dualidade é o fio condutor de finde mundo (164 págs.), livro de estreia na poesia de Lígia Souto, publicado pela editora Patuá. A obra, que já nasce sob o prestígio do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, é um convite à introspecção, à crítica e à descoberta.
Estrutura e essência: o calendário poético
Composta por seções que correspondem aos meses do ano, a coletânea utiliza o cotidiano como ponto de partida para refletir sobre a finitude, explorando temas como angústia, esperança e as dinâmicas sociais da contemporaneidade. Segundo o escritor e jornalista Leo de Sá Fernandes, que assina os paratextos do livro, a obra conecta o íntimo ao coletivo: “A força motriz de finde mundo remete à provocação do filósofo britânico Mark Fisher, que questiona se é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
A autora, Lígia Souto, descreve seu trabalho como o olhar de um eu-lírico que espera — e, por vezes, deseja — pelo fim, enquanto enfrenta a continuidade implacável da vida. “Os poemas traçam um calendário do cotidiano de quem vive dia após dia na ansiedade da espera e se pergunta: o que fazer com o tempo que ainda tenho nas mãos? O que sentir?”
Linguagem poética e humor
Apesar do tom muitas vezes denso, a obra surpreende com momentos de leveza e ironia. Fernandes destaca a dualidade entre o trágico e o encantador, afirmando que o quintal descrito nos versos se transforma em um espaço simbólico: “É uma zona fronteiriça entre o público e o privado, o rural e o urbano, onde o fim pode ser também um começo.”
Essa conexão com o espaço cotidiano é evidenciada em poemas como corpo-espaço, no qual a autora evoca dores invisíveis e memórias fragmentadas:
“ultimamente eu sinto dores
pequenas e agudas
em lugares que não sei.
tubulações obstruídas de desejos frustrados
ou motor sem água, sem óleo
sem sangue.
[…]
da festa que eu já fui.”
O reconhecimento literário
Conquistar o Prêmio Carolina Maria de Jesus em 2023 consolidou Lígia como uma voz relevante na literatura brasileira contemporânea. Para ela, o reconhecimento é a validação de um trabalho de anos. Influenciada por nomes como Ana Cristina César, Paulo Leminski e José Saramago, a autora considera A teus pés, de Ana C., uma referência fundamental tanto na escrita quanto na estética de finde mundo.
Segundo Lígia, os poemas ganham nova dimensão quando lidos em conjunto, expandindo-se do ambiente doméstico para abarcar o mundo exterior, especialmente o Brasil. “A casa e o quintal são espaços que refletem o caos e, ao mesmo tempo, servem como locais de introspecção e reinvenção”, observa.
O caminho de Lígia Souto
Natural de São Paulo, Lígia começou a escrever ainda na infância, criando histórias que, apesar de perdidas, deram início ao hábito de registrar suas ideias. Aos 19 anos, criou um blog “secreto” onde guardava textos e poemas, muitos dos quais vieram a compor seu livro de estreia.
Graduada em atuação e dramaturgia pela SP Escola de Teatro, Lígia também é dramaturga e roteirista. Entre suas criações estão as peças Estrangeiro, Udumbara e Cinema Jenin (coautoria), além de roteiros para séries como Boto (TV Cultura) e Drag Me As A Queen! Celebridades (Canal E!). Atualmente, ela trabalha em um novo projeto poético, desta vez inspirado no universo dos sonhos, e em uma dramaturgia inédita.
“Mesmo que o mundo se acabe, o amanhã sempre chega”
Essa frase da autora resume o espírito de finde mundo. Embora profundamente crítico, o livro não abandona a esperança. Nas palavras de Fernandes: “As notícias do fim do mundo atravessam as paredes, mas deixam espaço para a reinvenção.”
Onde adquirir
A obra está disponível no site da Editora Patuá.
Uma reflexão necessária
finde mundo não é apenas um livro de poesia; é uma experiência que convida o leitor a repensar seu papel no mundo e a forma como encara o tempo e a finitude. Lígia Souto estreia como uma voz poderosa, que ecoa entre o íntimo e o universal, transformando o fim em começo.