
Em pleno 2024, enquanto o mundo celebra avanços tecnológicos impressionantes, o Brasil enfrenta uma crise silenciosa que contradiz sua posição como uma das maiores economias globais: a falta de saneamento básico. Dados alarmantes recentemente divulgados pelo Ministério da Saúde revelam que mais de 344 mil brasileiros foram hospitalizados neste ano devido a doenças diretamente relacionadas à veiculação hídrica – enfermidades que, em sua maioria, poderiam ser evitadas com infraestrutura sanitária adequada.
Este número não representa apenas estatísticas frias; são vidas interrompidas, famílias afetadas e um sistema de saúde sobrecarregado por condições evitáveis. Estamos falando de crianças que perdem dias escolares, adultos que ficam impossibilitados de trabalhar e idosos cuja saúde já fragilizada é ainda mais comprometida. A ausência de serviços básicos como tratamento de esgoto e fornecimento de água potável constitui uma violação fundamental de direitos humanos e reflete desigualdades sociais profundamente enraizadas no país.
O que torna esta situação particularmente perturbadora é o contraste entre o potencial econômico brasileiro e a negligência com questões sanitárias fundamentais. O Brasil possui a nona economia mundial, é reconhecido por sua abundância de recursos hídricos e capacidade técnica, mas falha em garantir condições sanitárias básicas para aproximadamente 90 milhões de cidadãos – quase metade de sua população.
O impacto desta falha estrutural vai muito além da saúde individual. As consequências se estendem à produtividade nacional, à sustentabilidade ambiental, ao desenvolvimento das futuras gerações e representam um obstáculo significativo para o crescimento socioeconômico do país. Cada real não investido em saneamento básico hoje se converte em um multiplicador de gastos futuros com saúde pública, degradação ambiental e perda de potencial humano.
Neste artigo, exploraremos a complexa realidade do saneamento básico no Brasil. Analisaremos as causas profundas do déficit sanitário, as consequências multidimensionais dessa crise, os avanços proporcionados pelo Marco Legal do Saneamento e as possíveis soluções inovadoras que podem acelerar o processo de universalização. Também examinaremos exemplos de sucesso, tanto nacionais quanto internacionais, que podem servir de inspiração para políticas públicas mais eficazes.
A CRISE INVISÍVEL: PANORAMA DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL
A realidade do saneamento básico no Brasil expõe uma das faces mais cruéis da desigualdade social no país. Apesar de ser reconhecido mundialmente por suas abundantes reservas hídricas – aproximadamente 12% da água doce do planeta – o Brasil convive com a contraditória situação de ter milhões de cidadãos sem acesso a água potável. Os números do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) são inequívocos: mais de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada, enquanto aproximadamente 90 milhões não contam com serviços adequados de coleta de esgoto.
Esta disparidade não se distribui uniformemente pelo território nacional. As regiões Norte e Nordeste apresentam os indicadores mais críticos, com taxas de cobertura significativamente inferiores à média nacional. Em alguns estados dessas regiões, menos de 30% da população tem acesso a esgotamento sanitário. Mesmo em grandes centros urbanos, a desigualdade é evidente: enquanto bairros nobres desfrutam de infraestrutura completa, comunidades periféricas frequentemente convivem com esgoto a céu aberto e fornecimento irregular de água.
O déficit de saneamento também revela um componente racial e social preocupante. Estudos do Instituto Trata Brasil mostram que a população negra e de baixa renda é desproporcionalmente afetada pela falta de saneamento. Esta correlação entre condições sanitárias precárias e vulnerabilidade socioeconômica evidencia como o problema se insere em um contexto mais amplo de desigualdade estrutural.
A evolução histórica dos investimentos em saneamento no Brasil tem sido marcada por ciclos de expansão e retração. O Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), implementado durante o regime militar nos anos 1970, representou um marco significativo, mas seu alcance foi limitado. Nas décadas seguintes, a ausência de uma política nacional consistente resultou em avanços fragmentados e desiguais. Só recentemente, com o estabelecimento de marcos regulatórios mais robustos, o tema voltou a ganhar destaque na agenda política nacional.
Um dos principais entraves para a universalização do saneamento básico tem sido a fragmentação do setor e a ausência de um modelo de governança eficiente. A responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios frequentemente resulta em sobreposições, lacunas e ineficiências. Além disso, a escassez de recursos técnicos e financeiros em muitos municípios dificulta a elaboração e implementação de projetos adequados às realidades locais.
IMPACTOS NA SAÚDE PÚBLICA: O CUSTO HUMANO DO DÉFICIT SANITÁRIO
As 344 mil internações registradas em 2024 por doenças de veiculação hídrica representam apenas a ponta visível de um iceberg muito maior. Para cada hospitalização contabilizada, estima-se que existam dezenas de casos que não chegam a receber atendimento hospitalar, mas comprometem igualmente a qualidade de vida dos afetados e sobrecarregam as unidades básicas de saúde.
Entre as enfermidades diretamente associadas à precariedade do saneamento, destacam-se a diarreia – responsável por aproximadamente 60% dessas internações –, hepatite A, leptospirose, esquistossomose, cólera e diversas parasitoses intestinais. A diarreia, em particular, representa um risco significativo para crianças menores de cinco anos, podendo levar à desidratação severa e, em casos extremos, ao óbito.
O Dr. Igor Marinho, infectologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, esclarece o mecanismo de transmissão dessas doenças: “Essas enfermidades se proliferam em regiões onde não há coleta e tratamento de esgoto ou onde a água consumida não é potável. Em muitos casos, a contaminação ocorre dentro das próprias casas, por falta de estrutura sanitária.” Esta observação evidencia como o problema do saneamento transcende o espaço público e adentra o ambiente doméstico, afetando aspectos fundamentais da vida cotidiana.
Grupos populacionais específicos apresentam vulnerabilidade acentuada. Crianças, devido à imaturidade de seu sistema imunológico e hábitos de higiene em formação, são particularmente suscetíveis. Idosos, gestantes e pessoas com comorbidades também enfrentam riscos elevados. Nas comunidades mais carentes, onde o acesso a serviços de saúde já é limitado, essas condições frequentemente se agravam antes de receberem a devida atenção médica.
O impacto das doenças de veiculação hídrica vai além dos sintomas imediatos. Estudos recentes indicam que infecções gastrointestinais recorrentes na infância podem comprometer o desenvolvimento cognitivo e físico, resultando em déficits educacionais e menor produtividade na vida adulta. Além disso, a ocorrência dessas doenças está associada a maiores taxas de absenteísmo escolar e laboral, criando um ciclo vicioso que perpetua condições de pobreza.
A carga econômica destas enfermidades sobre o sistema público de saúde é substancial. Dados do Ministério da Saúde indicam que o SUS gasta anualmente mais de R$ 300 milhões com internações evitáveis relacionadas à falta de saneamento. Este valor representa apenas os custos diretos de hospitalização, excluindo gastos com medicamentos ambulatoriais, consultas médicas, exames diagnósticos e perda de produtividade.
O MARCO LEGAL DO SANEAMENTO: AVANÇOS E DESAFIOS
Em julho de 2020, o Brasil deu um passo significativo com a aprovação do novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020), estabelecendo diretrizes renovadas para o setor e fixando metas ambiciosas: garantir que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e coleta de esgoto até 2033. Esta legislação representou uma mudança paradigmática na abordagem do saneamento no país.
Entre as principais inovações introduzidas pelo Marco Legal destaca-se a abertura do setor para maior participação da iniciativa privada. O novo modelo estabeleceu a obrigatoriedade de licitação para a prestação de serviços de saneamento, eliminando os chamados “contratos de programa” que permitiam às companhias estaduais assumir esses serviços sem concorrência. Esta mudança visa atrair mais investimentos e promover maior eficiência operacional.
Outro aspecto fundamental da nova legislação foi o fortalecimento da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que passou a ter competência para estabelecer normas de referência para o setor. Esta centralização regulatória busca superar a fragmentação normativa que historicamente dificultou investimentos e prejudicou a qualidade dos serviços.
Os quatro anos que se seguiram à implementação do Marco Legal já mostraram sinais positivos. Segundo dados da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON), os investimentos privados no setor cresceram aproximadamente 25% entre 2020 e 2024. Foram realizados leilões importantes em diversos estados, com destaque para as concessões no Rio de Janeiro, Alagoas e Amapá, que atraíram bilhões em investimentos.
Contudo, os desafios para a efetiva implementação da lei permanecem significativos. A resistência política em algumas regiões, questionamentos judiciais sobre aspectos específicos da legislação e dificuldades técnicas para estruturação de projetos em municípios de menor porte têm desacelerado o ritmo de avanço. Além disso, a definição de blocos regionais de municípios para viabilizar economicamente as concessões ainda encontra obstáculos operacionais e políticos.
A engenheira civil Sibylle Muller, CEO da NeoAcqua, ressalta a importância do marco regulatório, mas aponta para a necessidade de esforços adicionais: “O Marco Legal do Saneamento tem impulsionado o aumento da cobertura dos tratamentos de água e esgoto, mas ainda serão necessários mais investimentos para atingir a universalização do saneamento no País.” Esta observação evidencia que, apesar dos avanços no ambiente regulatório, o déficit acumulado exige mobilização extraordinária de recursos e capacidades.
IMPACTO ECONÔMICO: O ALTO PREÇO DA NEGLIGÊNCIA SANITÁRIA
A relação entre saneamento básico e desenvolvimento econômico vai muito além dos gastos diretos com saúde. Diversos estudos têm demonstrado que investimentos em infraestrutura sanitária geram retornos substanciais para a sociedade. Segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), cada dólar investido em água e esgoto pode gerar um retorno econômico de até US$ 5,50, considerando a redução de custos médicos, aumento de produtividade e valorização imobiliária.
No contexto brasileiro, o Instituto Trata Brasil estima que a universalização do saneamento poderia acrescentar R$ 1,1 trilhão à economia nacional ao longo de 40 anos. Este ganho viria principalmente da valorização imobiliária, do aumento da produtividade da força de trabalho, da redução de custos com saúde e da expansão do turismo em regiões atualmente prejudicadas pela infraestrutura precária.
A falta de saneamento adequado também compromete a competitividade internacional do Brasil. A imagem de um país com infraestrutura deficiente afeta negativamente o potencial turístico – especialmente em localidades que poderiam se beneficiar de suas belezas naturais – e desencoraja certos tipos de investimentos estrangeiros. Além disso, as condições sanitárias precárias representam um obstáculo para a certificação de produtos agrícolas destinados à exportação.
Como observa Sibylle Muller, “No Brasil, o déficit de saneamento impacta diretamente os gastos públicos e o desenvolvimento social e econômico.” Esta correlação é particularmente evidente quando analisamos indicadores de desenvolvimento humano. Municípios com melhor cobertura de saneamento tipicamente apresentam melhores índices educacionais, menor mortalidade infantil e maior expectativa de vida.
O mercado de trabalho também é significativamente afetado. Pesquisas indicam que trabalhadores expostos a condições sanitárias inadequadas têm probabilidade até 30% maior de se ausentarem do trabalho por motivos de saúde. Este absenteísmo representa perdas substanciais em termos de produtividade e custo para empregadores. Além disso, o tempo dedicado por famílias – especialmente mulheres – a contornar a falta de acesso à água encanada poderia ser utilizado em atividades econômicas produtivas.
A própria indústria do saneamento representa um potencial econômico considerável. Estimativas do setor indicam que a universalização demandaria investimentos superiores a R$ 700 bilhões, com capacidade de gerar centenas de milhares de empregos diretos e indiretos. O desenvolvimento de tecnologias nacionais para tratamento de água e esgoto também poderia posicionar o Brasil como exportador de soluções em um mercado global cada vez mais preocupado com a segurança hídrica.
SOLUÇÕES INOVADORAS: ALTERNATIVAS PARA ACELERAR A UNIVERSALIZAÇÃO
Diante da magnitude do desafio e das limitações de recursos, soluções inovadoras surgem como elementos cruciais para acelerar a universalização do saneamento. A engenheira Sibylle Muller destaca uma abordagem promissora: “Sistemas descentralizados de tratamento de esgoto, projetados com tecnologias eficientes, especialmente em áreas não atendidas por rede de coleta, são alternativas econômicas para redução do déficit de saneamento e da poluição de rios, lagos e outros cursos d’água.”
Estes sistemas descentralizados representam uma mudança de paradigma importante. Em vez de depender exclusivamente de grandes redes coletoras que demandam investimentos volumosos e longos prazos de implementação, comunidades isoladas ou periféricas podem se beneficiar de soluções locais que resolvem o problema em menor escala. Tecnologias como biodigestores, wetlands construídos (sistemas que utilizam plantas para tratamento), reatores anaeróbios compactos e sistemas de tratamento individualizado por residência têm se mostrado viáveis em diversos contextos.
No Brasil, algumas experiências já demonstram o potencial dessas abordagens. Em comunidades rurais de Minas Gerais, por exemplo, o programa “Sanear Minas” implementou sistemas descentralizados que combinam fossas sépticas biodigestoras com jardins filtrantes, resultando em melhorias significativas na qualidade das águas locais. Em áreas periurbanas de Recife, iniciativas comunitárias com apoio técnico desenvolveram “minissistemas” de tratamento que atendem a grupos de residências, superando limitações da infraestrutura convencional.
A inovação também se manifesta nos modelos de financiamento. Esquemas de microcrédito específicos para instalações sanitárias domésticas, parcerias público-privadas de pequena escala e cooperativas comunitárias de saneamento têm surgido como alternativas para mobilizar recursos em contextos onde grandes investimentos estatais ou privados são inviáveis. Esses arranjos permitem que famílias de baixa renda acessem infraestrutura básica sem depender exclusivamente da expansão das redes públicas.
O aproveitamento econômico dos subprodutos do tratamento de esgoto constitui outra fronteira inovadora. A geração de biogás para produção de energia, a recuperação de nutrientes para fertilizantes e o reuso de água tratada para fins não potáveis já são realidades em diversas localidades. Estas práticas não apenas reduzem o impacto ambiental, mas também criam fluxos de receita que podem ajudar a financiar a operação dos sistemas.
Tecnologias digitais também começam a transformar o setor. Sensores remotos para monitoramento da qualidade da água, sistemas inteligentes para detecção de vazamentos, aplicativos para engajamento comunitário na gestão hídrica e plataformas de transparência que permitem aos cidadãos acompanhar a qualidade dos serviços prestados representam avanços significativos. Estas inovações contribuem para maior eficiência operacional e melhor governança do setor.
EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS: LIÇÕES PARA O BRASIL
A busca por soluções para o déficit de saneamento pode se beneficiar da análise de experiências internacionais bem-sucedidas, especialmente de países que enfrentaram desafios similares aos brasileiros. O caso da Coreia do Sul é particularmente ilustrativo: em apenas três décadas, o país elevou sua cobertura de esgotamento sanitário de menos de 30% para mais de 90%. Este salto foi alcançado através de uma combinação de planejamento centralizado, investimentos consistentes e adoção de tecnologias adaptadas às diferentes realidades regionais.
Na América Latina, o Chile desenvolveu um modelo que conseguiu universalizar o acesso ao saneamento em áreas urbanas mediante um sistema misto que combina empresas privatizadas com forte regulação estatal e subsídios direcionados às famílias de baixa renda. Este equilíbrio entre eficiência privada e garantias sociais poderia inspirar adaptações ao modelo brasileiro recentemente reformulado pelo Marco Legal do Saneamento.
A Índia, país que compartilha com o Brasil o desafio de garantir saneamento para uma população numerosa distribuída em um vasto território, lançou em 2014 o ambicioso programa “Swachh Bharat Mission” (Missão Índia Limpa). A iniciativa, que combinou campanhas de conscientização em massa, incentivos à construção de banheiros domésticos e sistemas comunitários de gestão, reduziu drasticamente a defecação a céu aberto no país e melhorou significativamente indicadores de saúde pública.
Sistemas descentralizados têm sido aplicados com sucesso em diversos contextos internacionais. Na Alemanha, por exemplo, comunidades rurais utilizam tecnologias como reatores biológicos de membrana e wetlands construídos para tratamento local de efluentes, evitando os custos elevados de conexão com sistemas centralizados distantes. Na África do Sul, “micro concessionárias” geridas pelas próprias comunidades operam pequenas estações de tratamento em áreas periurbanas, combinando geração de empregos locais com solução sanitária adequada.
O aspecto tecnológico também apresenta exemplos inspiradores. Cingapura desenvolveu o revolucionário sistema NEWater, que converte esgoto tratado em água potável utilizando processos avançados de ultrafiltração, osmose reversa e tratamento com ultravioleta. Embora o contexto daquele país-cidade seja muito diferente do brasileiro, as tecnologias e a abordagem de ciclo completo da água podem ser adaptadas para regiões específicas do Brasil que enfrentam estresse hídrico.
Comum a estes exemplos bem-sucedidos está a presença de alguns elementos fundamentais: compromisso político de longo prazo que transcende ciclos eleitorais; modelos de financiamento sustentáveis; engajamento comunitário; soluções tecnológicas adaptadas às realidades locais; e forte arcabouço regulatório. A adaptação criteriosa dessas experiências à realidade brasileira, respeitando especificidades culturais, geográficas e socioeconômicas, pode acelerar significativamente o progresso do país em direção à universalização do saneamento.
ANÁLISE DE IMPACTO: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO DÉFICIT SANITÁRIO
As consequências da falta de saneamento básico extrapolam o âmbito da saúde pública e se ramificam por praticamente todas as esferas da vida social. Uma análise abrangente desses impactos permite compreender a verdadeira dimensão do problema e a urgência de sua solução.
Na dimensão educacional, estudos realizados pela UNICEF demonstram que crianças que vivem em áreas sem saneamento adequado faltam mais às aulas devido a doenças de veiculação hídrica. A pesquisa “Saneamento e Educação”, conduzida pelo Instituto Trata Brasil, revelou que estudantes de localidades com acesso a serviços sanitários adequados têm desempenho escolar até 18% superior em disciplinas como matemática e português, quando comparados a alunos de áreas sem esta infraestrutura. Estes dados evidenciam como o déficit sanitário compromete o futuro de gerações inteiras.
Do ponto de vista ambiental, o lançamento de esgotos não tratados em corpos hídricos causa degradação severa dos ecossistemas. Aproximadamente 5.500 rios brasileiros estão oficialmente classificados como poluídos, principalmente por efluentes domésticos. Esta contaminação compromete a biodiversidade aquática, reduz a disponibilidade de água utilizável para consumo humano e atividades econômicas, e exige tratamentos cada vez mais complexos e custosos para potabilização.
Na perspectiva da equidade de gênero, a ausência de infraestrutura sanitária impõe um fardo desproporcional sobre mulheres e meninas. Em muitas comunidades sem acesso à água encanada, cabe tradicionalmente às mulheres a tarefa de buscar água em fontes distantes, comprometendo tempo que poderia ser dedicado à educação ou atividades produtivas. Adicionalmente, a falta de instalações sanitárias adequadas em escolas está associada à evasão escolar de meninas durante o período menstrual.
O impacto sobre populações específicas também merece atenção particular. Comunidades indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais frequentemente são as mais negligenciadas em termos de infraestrutura sanitária. Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), apenas 32% das aldeias indígenas possuem sistemas adequados de abastecimento de água, perpetuando vulnerabilidades históricas destas populações.
As mudanças climáticas tendem a exacerbar os problemas relacionados ao saneamento inadequado. A maior incidência de eventos extremos, como enchentes e secas prolongadas, coloca pressão adicional sobre sistemas já fragilizados. Em períodos de chuvas intensas, áreas sem drenagem adequada sofrem com alagamentos que promovem a dispersão de contaminantes, enquanto secas podem comprometer o abastecimento de água em regiões dependentes de fontes superficiais.
O setor turístico brasileiro também é significativamente prejudicado pelo déficit sanitário. Destinos com potencial turístico elevado frequentemente perdem competitividade internacional devido à percepção negativa associada a praias impróprias para banho ou riscos à saúde relacionados à água. Esta situação é particularmente evidente em regiões litorâneas onde o turismo representa uma importante fonte de renda para as comunidades locais.
PERSPECTIVA COMPARATIVA: DISPARIDADES REGIONAIS E SOCIAIS
A análise comparativa do acesso ao saneamento básico no Brasil revela contrastes pronunciados entre diferentes regiões, estados e segmentos sociais. Estas disparidades refletem padrões históricos de desenvolvimento desigual e demandam estratégias diferenciadas para sua superação.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2023 mostram que, enquanto a região Sudeste apresenta índices de cobertura de coleta de esgoto próximos a 80%, no Norte este percentual não ultrapassa 15%. Estados como São Paulo e Paraná exibem indicadores comparáveis aos de países desenvolvidos, com mais de 90% de cobertura em tratamento de esgoto em suas áreas urbanas. Em contraste, Amapá e Rondônia ainda não alcançaram 30% de atendimento em suas principais cidades.
A disparidade entre zonas urbanas e rurais é ainda mais acentuada. Enquanto nas áreas urbanas aproximadamente 85% dos domicílios têm acesso à água tratada, no meio rural este percentual cai para cerca de 40%. No caso do esgotamento sanitário, a situação é ainda mais crítica: apenas 8% das residências rurais são atendidas por sistemas adequados de coleta e tratamento de efluentes. Esta realidade expõe a concentração histórica de investimentos nas regiões metropolitanas e a necessidade de políticas específicas para contextos rurais.
Uma análise por faixa de renda revela aspectos preocupantes da desigualdade social brasileira. Segundo dados do IBGE, enquanto 99% dos domicílios com renda superior a 20 salários mínimos possuem acesso completo a serviços de saneamento, entre famílias com renda inferior a dois salários mínimos, este percentual não ultrapassa 35%. Esta correlação entre poder aquisitivo e acesso a serviços essenciais evidencia como o déficit sanitário reproduz e aprofunda desigualdades socioeconômicas.
Comparações internacionais colocam o Brasil em posição desconfortável, mesmo considerando apenas países com grau de desenvolvimento similar. Na América Latina, nações como Chile, Uruguai e Costa Rica apresentam indicadores significativamente superiores. O Brasil ocupa apenas a 16ª posição entre os 20 países latino-americanos em termos de cobertura de saneamento básico, atrás de países com PIB per capita consideravelmente menor, como Bolívia e El Salvador.
Internamente, alguns casos de sucesso oferecem inspiração. Municípios como Uberlândia (MG) e Londrina (PR) alcançaram universalização dos serviços de água e esgoto mediante modelos de gestão eficientes e investimentos consistentes ao longo de décadas. Estas experiências demonstram que fatores como continuidade administrativa, planejamento de longo prazo e gestão técnica qualificada são determinantes para superar o déficit sanitário.
É importante observar que as disparidades no acesso ao saneamento não são apenas geográficas ou econômicas, mas também étnico-raciais. Dados do IBGE revelam que domicílios chefiados por pessoas autodeclaradas negras têm probabilidade 27% menor de contar com serviços adequados de esgotamento sanitário quando comparados a domicílios chefiados por pessoas brancas, mesmo controlando por variáveis de renda e localização. Esta realidade evidencia a dimensão racial da exclusão sanitária no Brasil e a necessidade de políticas específicas para superá-la.
PERGUNTAS FREQUENTES SOBRE SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL
1. O que é considerado saneamento básico e quais serviços ele engloba?
O saneamento básico compreende um conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais relacionados a: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário (coleta, transporte, tratamento e disposição final de esgotos); limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. No Brasil, estes serviços são regulamentados pela Lei 11.445/2007, atualizada pelo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020). Um sistema completo de saneamento deve garantir não apenas a disponibilidade destes serviços, mas também sua qualidade, regularidade e universalidade.
2. Por que o Brasil ainda enfrenta tantos problemas com saneamento básico apesar de ser uma das maiores economias do mundo?
O déficit sanitário brasileiro resulta de uma combinação de fatores históricos, políticos e estruturais. Entre as principais causas estão: a insuficiência histórica de investimentos no setor (menos de 0,5% do PIB anualmente, quando seria necessário pelo menos o dobro); a fragmentação da gestão entre diferentes esferas governamentais; a baixa capacidade técnica e financeira de muitos municípios; a ausência, até recentemente, de um marco regulatório adequado; e a competição por recursos com outros setores de infraestrutura percebidos como mais “visíveis” politicamente. Além disso, o modelo de urbanização acelerada e desordenada que caracterizou o desenvolvimento das cidades brasileiras dificultou o planejamento e a implementação de sistemas abrangentes de saneamento.
3. Quais são as principais doenças causadas pela falta de saneamento básico e como elas se manifestam?
A ausência de saneamento adequado está diretamente relacionada a diversas enfermidades. Entre as mais comuns estão:
- Diarreia: causada por diversos agentes infecciosos transmitidos pela água contaminada, é especialmente perigosa para crianças e idosos;
- Hepatite A: infecção viral transmitida por água e alimentos contaminados, causa inflamação do fígado;
- Leptospirose: doença bacteriana que se dissemina principalmente por águas contaminadas com urina de roedores durante enchentes;
- Esquistossomose: infecção causada por parasitas que proliferam em águas paradas contaminadas;
- Amebíase e giardíase: infecções parasitárias intestinais transmitidas por água e alimentos contaminados;
- Dengue, zika e chikungunya: transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, que se reproduz em água parada, frequentemente resultante de drenagem urbana inadequada.
Estas doenças tipicamente se manifestam com sintomas como febre, dores abdominais, vômitos, diarreia, desidratação e, em casos graves, podem levar a complicações severas e até mesmo óbito.
4. O que o Marco Legal do Saneamento mudou na prática e quais são suas principais metas?
O Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020) trouxe mudanças estruturais profundas para o setor. Na prática, a lei acabou com os “contratos de programa” que permitiam às companhias estaduais assumir serviços sem licitação, tornando obrigatória a concorrência aberta. Isso ampliou significativamente a participação privada no setor. A lei também fortaleceu a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), atribuindo-lhe competência para estabelecer normas de referência nacionais, reduzindo a fragmentação regulatória que existia anteriormente.
As principais metas estabelecidas são ambiciosas: atingir 99% de cobertura para abastecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto até 2033. A legislação também incentiva a regionalização dos serviços, agrupando municípios em blocos para viabilizar economicamente as operações em cidades menores. Outra mudança significativa foi a introdução de metas de desempenho nos contratos e maior transparência com indicadores padronizados, facilitando a fiscalização pela sociedade.
5. Como os sistemas descentralizados de tratamento de esgoto funcionam e por que são importantes para o Brasil?
Os sistemas descentralizados consistem em soluções de tratamento implementadas próximas ao ponto de geração dos efluentes, atendendo desde residências individuais até pequenos grupos de edificações. Diferentemente dos sistemas convencionais centralizados, que coletam e transportam o esgoto por longas distâncias até grandes estações de tratamento, os sistemas descentralizados processam os efluentes localmente.
Estas tecnologias incluem fossas sépticas biodigestoras, wetlands construídos (sistemas que utilizam plantas para filtragem), reatores anaeróbios compactos e sistemas de tratamento por zonas de raízes. A importância destes sistemas para o Brasil reside em sua capacidade de atender rapidamente áreas isoladas ou periféricas, sem depender da expansão de redes de grande porte que demandam investimentos volumosos e longos prazos de implementação.
Como destacou a engenheira Sibylle Muller, “Sistemas descentralizados de tratamento de esgoto, projetados com tecnologias eficientes, especialmente em áreas não atendidas por rede de coleta, são alternativas econômicas para redução do déficit de saneamento e da poluição de rios, lagos e outros cursos d’água.” Estes sistemas representam uma solução viável para acelerar o processo de universalização, especialmente em comunidades rurais, periurbanas e de difícil acesso.
O DIREITO FUNDAMENTAL QUE NÃO PODE MAIS ESPERAR
A crise do saneamento básico no Brasil, evidenciada pelas mais de 344 mil internações por doenças de veiculação hídrica registradas em 2024, não representa apenas um desafio de infraestrutura ou um problema de saúde pública isolado. Trata-se de uma questão fundamental de direitos humanos, dignidade e justiça social que afeta diretamente 90 milhões de brasileiros – quase metade da população do país.
Os números revelados pelo Ministério da Saúde e pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) escancararam uma realidade que muitos preferem ignorar: em pleno século XXI, o Brasil ainda convive com doenças medievais. Milhões de cidadãos são privados do acesso à água potável e sistemas adequados de esgotamento sanitário, resultando em um ciclo perverso de adoecimento, perda de produtividade e perpetuação da pobreza.
O déficit sanitário brasileiro representa uma dívida histórica com as populações mais vulneráveis. A distribuição desigual dos serviços de saneamento por critérios geográficos, sociais e raciais evidencia como o acesso a direitos básicos ainda é determinado por fatores como local de nascimento, cor da pele e renda familiar. Superar esta realidade é um imperativo ético para qualquer nação que se pretenda justa e desenvolvida.
O novo Marco Legal do Saneamento trouxe avanços significativos no ambiente regulatório e já começa a produzir resultados positivos em termos de atração de investimentos. No entanto, como alertou a engenheira Sibylle Muller, ainda serão necessários esforços extraordinários para atingir a meta de universalização até 2033. Este desafio demandará uma verdadeira mobilização nacional, envolvendo poder público, iniciativa privada, academia e sociedade civil.
As soluções para acelerar o processo de universalização existem e vão além dos modelos convencionais. Sistemas descentralizados de tratamento, novas tecnologias, modelos alternativos de financiamento e abordagens que valorizam o conhecimento e a participação comunitária podem complementar os investimentos em grandes redes de infraestrutura. A diversificação de estratégias, adaptadas às diferentes realidades do território nacional, é fundamental para não deixar ninguém para trás.
Como sociedade, precisamos elevar o saneamento básico ao topo da agenda política nacional. É necessário compreender que investir na universalização do acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário não representa apenas um gasto público, mas um investimento com retornos extraordinários em saúde, educação, produtividade, preservação ambiental e qualidade de vida. Os estudos são inequívocos: cada real aplicado em saneamento retorna múltiplas vezes em benefícios sociais e econômicos.
O Dr. Igor Marinho, infectologista citado no início deste artigo, nos lembrou que “a prevenção depende tanto de ações públicas quanto de cuidados individuais”. Esta observação resume bem o caminho à frente: precisamos de políticas públicas robustas, investimentos consistentes e regulação eficiente, mas também de engajamento cidadão, conscientização sobre práticas sanitárias adequadas e mobilização por direitos.
O Brasil possui recursos naturais abundantes, capacidade técnica, arcabouço legal renovado e potencial econômico para superar o déficit sanitário nas próximas décadas. O que precisamos agora é transformar o saneamento básico em prioridade nacional genuína, com o mesmo nível de atenção e recursos dedicados a setores como transporte, energia e telecomunicações. Somente assim poderemos garantir que o direito fundamental à água limpa e ao esgotamento sanitário adequado seja uma realidade para todos os brasileiros, independentemente de onde vivam ou de sua condição socioeconômica.
Engaje-se na luta pela universalização do saneamento básico! Informe-se sobre a situação do saneamento em sua cidade, cobre seu poder público local por metas claras e transparentes, e apoie iniciativas que promovam soluções inovadoras para acelerar o acesso universal à água tratada e ao esgotamento sanitário adequado.